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O que perpetua as relações abusivas não é o amor, mas sim o desamparo

CARAS Publicado em 30/07/2013, às 21h26 - Atualizado em 10/05/2019, às 11h20

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O amor atravessa a história humana. Ele está na religião, na literatura, nas novelas, nos filmes. Não poderia ser de outro jeito, uma vez que nasce da relação entre as pessoas. Mas, pobre do amor, muitas vezes ele é
confundido com outros sentimentos e vê seu romântico nome ser tomado em vão. Um exemplo gritante é o dos relacionamentos em que ocorre algum tipo de abuso. 

Tanto homens quanto mulheres já me contaram, no consultório e fora dele, histórias que acreditam ser histórias de amor, mas não são. Em geral elas têm um lindo começo: “Quando nos casamos a vida parecia perfeita. Éramos excelentes companheiros um para o outro, nos divertíamos, nos completávamos.” Depois, rapidamente o relato muda de tom: “Com o tempo, tudo mudou.” A partir daí, aparece de tudo: “Ela
começou a beber demais”
“ele ficou violento”, “ela passou a bater em nossos filhos”, “ele deixou de me respeitar”; e por aí vai.

Em geral, quando contam a alguém, seja um terapeuta, seja um amigo, a situação já caminha mal há algum tempo. Estão desesperados e não sabem o que fazer. Quando lhes perguntam “Em nome do quê tudo isso?” A resposta costuma se repetir, com pequenas diferenças: “É que eu a amo muito, apesar de tudo”;“eu o amo tanto que não consigo reagir”; “eu não aguentaria me separar dela”; “me perturba a ideia de denunciá-lo por maus-tratos”; “meu amor é grande demais”

Amor? Coitado do amor! Se ele fosse uma pessoa estaria carregando uma carga pesada, que não é sua. É chocante que atitudes como essas, ainda que passivas, sejam tomadas em nome do amor, que ele seja convocado para legitimar situações de violência. É como se essas pessoas dissessem: “Em nome do amor me deixo humilhar”; “em nome do amor me deixo violar”

Tudo bem que o amor também pode incluir algo de possessividade, de ciúme e até de vingança, mas é, antes de tudo, cuidado, carinho, respeito, paixão, companheirismo. O amor não é em si destruição. Mas o que sentem essas pessoas, se não é o amor que imaginam? Muito provavelmente desamparo, sensação de abandono, solidão angustiante, imensa culpa e uma fragilidade extrema. Sentem-se como crianças dependentes da presença do outro. Este outro que, mesmo sendo hostil, imaginariamente lhes garante um sentimento de segurança. 

Acreditam que, sozinhas, não se sustentarão. Não financeiramente, mas emocionalmente. O medo da solidão elimina o critério na escolha amorosa e o autorrespeito. Frequentemente ouvimos alguém classificá-las como pessoas que “gostam de sofrer”. Não, não gostam de sofrer, apenas estão imobilizadas — preferem sofrer a ficar sozinhas. 

O desamparo, disse Sigmund Freud (1856-1939), o criador da Psicanálise, é estrutural, demasiadamente humano. Somos todos desamparados por natureza e há aqueles que por isso se deixam prender a situações de violência. Para esses, o primeiro passo é tomar consciência de que a fragilidade não é só deles, mas do ser humano, e de que é possível lidar com ela. Nem semprem é fácil, e talvez seja necessária alguma ajuda. Esta pode vir de uma psicoterapia, da religião, de um amigo, da família, de uma atividade física ou artística. O apoio poderá ajudá-los a entender que o que sentem não tem nada a ver com amor. Deixemos em paz o amor.