O maestro João Carlos Martins sobe ao palco para apresentação ímpar e avalia jornada de superação na música
Em 1962, o público lotou o lendário Carnegie Hall, em NY, para aplaudir um jovem pianista brasileiro que, na época, arrancou elogios das mais notáveis críticas especializadas. De lá para cá, aquele jovem construiu uma carreira irretocável na música e se tornou um dos maiores intérpretes do alemão Johann Sebastian Bach (1685–1750) do século XX. Estamos falando do maestro João Carlos Martins (82), que mais uma vez emocionou o público da famosa sala de espetáculos para celebrar os 60 anos de sua estreia no palco novaiorquino. “A sensação de estar aqui mais uma vez é a mesma, porque a missão de um artista é transmitir emoção e procurar o perfeccionismo. Aquilo que tentei há 60 anos, é o que vou tentar agora”, destacou João Carlos, pouco antes de entrar em cena.
Hoje com os cabelos brancos e uma bagagem musical imensurável, o maestro tornou-se protagonista de uma história que, literalmente, já foi até digna de filme — em 2016 foi lançada a cinebiografia João, o Maestro, que narra a trajetória do paulistano nas artes. E nessa jornada, marcada por altos e baixos, algo permanece imutável: o espírito leve e a paixão pela música daquele mesmo menino de 60 anos atrás. “Voltar aqui faz passar um filme na minha cabeça. O filme de um garoto com 21 anos cheio de esperança e de um velho senhor, aos 82 anos, também cheio de esperança”, destaca ele, que, apesar de toda a experiência, admite sentir aquele frio na barriga todas as vezes que precisa subir ao palco. “O artista que não sente o frio na barriga é porque alguma coisa falta dentro do seu coração e da sua alma. Quanto à preparação para estar aqui é como a disciplina de um atleta e a alma de um poeta”, afirma ele, regente da Orquestra Filarmônica Bachiana.
Por trás de todo o sucesso do maestro, o talento divide espaço com a superação. “Tive altas montanhas e vales profundos na minha trajetória, mas o importante é você estar, aos 82 anos, com os mesmos projetos que você tinha aos 21 anos”, avalia ele, falando sobre a distonia focal, doença rara e incurável que o acompanha há décadas e que afeta os músculos das mãos. Foi a distonia, aliás, que fez João Carlos se reinventar. Na impossibilidade de tocar seu piano, ele abraçou a regência. “São 64 anos com a distonia. Aos 30 anos, pensei em desistir. No entanto, seria falsa modéstia dizer que eu não tenho um pequeno dom de Deus. E quando você tem um pequeno dom de Deus, você tem uma missão na vida e essa missão você tem que levar até o apagar das luzes”, aponta o artista. Hoje, após mais de 20 cirurgias e graças ao uso de luvas biônicas, o piano voltou a ser um companheiro do maestro, que se divide entre a batuta e as teclas. “O maior desafio da regência é fazer com que a orquestra tenha o som do maestro, ou seja, o maestro tem de procurar fazer com que a orquestra misture a individualidade de um músico com a personalidade de um compositor”, explica ele.
A incansável batalha de João Carlos se tornou exemplo. Não à toa, durante sua passagem pela Big
Apple, foi convidado para dar uma palestra sobre o tema no escritório da Organização Mundial da Saúde, a OMS, diante de autoridades no assunto. “Jantei com a maior autoridade dos Estados Unidos
sobre distonia focal. E eu falo: como esse jovem brasileiro de 82 anos conseguiu reunir cientistas que chegaram aqui da Coreia do Sul, do Japão, da Suíça, de Los Angeles, de Chicago, em torno de uma causa? E, antes de tudo, uma causa que, agora, tem o suporte da Organização Mundial da
Saúde?”, indaga ele, que, além da distonia focal, precisou lidar, ao longo de sua trajetória, com outras barreiras, como uma lesão por esforço repetitivo, a LER, resultado das rigorosas 12 horas diárias de prática no piano.
E engana-se quem pensa que vida de maestro é tranquila! Além da palestra, da apresentação e, claro, dos ensaios, para brilhar no Carnegie Hall, João Carlos ainda encontrou tempo para participar de uma sessão especial de sua cinebiografia. E não para por aí! Ele também reservou tempo para caminhar pela cidade, absorvendo a atmosfera cosmopolita e multicultural de Nova York, e para curtir a calmaria do Central Park. Por falar em multiculturalismo, o maestro é um fiel defensor da democratização da música clássica pelo mundo. “Evidentemente que a música clássica, no século 21, tem aumentado cada vez mais o seu espaço. Quando você pensa há 500 anos, lá na época do Renascimento, a música clássica continuou seu caminho, isso porque ela une tradição com inovação”, sentencia ele. O amor pela música e pelo piano nasceu ainda na infância. E não poderia ter sido diferente, já que com apenas 8 meses de idade, João Carlos ouvia música clássica no berço. “A maior lição que aprendi com a música é que explica que Deus existe!”, dispara o artista, sem esconder que está cheio de planos e sonhos para o futuro nos palcos. “Aguardem! Em 2025, na primeira semana de maio, estarei no Carnegie Hall para um celebração inédita que vocês saberão no ano que vem!”, adianta ele, fazendo mistério sobre os próximos passos de sua aplaudida carreira internacional.
Fotos: Gabi Araújo