No dicionário, a palavra cult define algo idolatrado nos meios intelectuais e artísticos. O adjetivo, geralmente reservado a filmes, livros e pintores, há 50 anos passou a ser dado a um calendário. Não a um calendário qualquer, mas sim a um que já retratou tops como Kate Moss, Gisele Bündchen, Naomi Campbell e Cindy Crawford. Sem contar atrizes como Natassja Kinski, Penélope Cruz e Sophia Loren. Os locais escolhidos para fotografá- las são tão exóticos quanto inusitados, e vão de praias nas Ilhas Seychelles a lagos rodeados por elefantes em Botswana, na África. Até as favelas cariocas já foram cenário do famoso Calendário Pirelli, que completa meio século de vida em 2013.
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Mas talvez a mística em torno do “The Cal”, como é chamado informalmente, tenha começado, por mais óbvio que possa parecer, no início. Afinal, a primeira edição oficial, de 1964, foi clicada por ninguém menos que Robert Freeman, fotógrafo conhecido por acompanhar os Beatles em suas turnês e por assinar algumas capas de discos memoráveis da banda, como Help!. Pronto. Logo de cara, o projeto mostrava a intenção de se afastar do velho conceito da folhinha pendurada nas ofi cinas mecânicas, rumo a ambientes mais refi nados, como museus e paredes de colecionadores. O enfoque dado à nudez das modelos, ao contrário de objetificá-las, mostra mulheres poderosas e sensuais, em fotos que celebram a beleza e a feminilidade sem cair no lugar-comum. Basta lembrar do memorável trabalho realizado por Richard Avedon em 1995, quando o tema foram as quatro estações.
E para provar que nem só de nudez vive o Calendário Pirelli, em 2013 houve uma profunda ruptura de padrões: as modelos estavam vestidas e todas eram engajadas em alguma causa humanitária. Uma verdadeira edição “social” do The Cal. A presença da atriz Sonia Braga foi exigência do fotógrafo Steve McCurry, especializado em guerras e zonas de conflito. É dele a icônica fotografia da garota afegã em um campo de concentração, que foi capa da National Geographic em 1985. Ironicamente, o cenário escolhido por McCurry foram os morros e becos do Rio de Janeiro, em vez das areias de Ipanema ou Copacabana. “Você pode fotografar nudez em qualquer lugar. Mas essas modelos estão vestidas e cada uma delas tem seu projeto social. Elas são idealistas. Queria fotografá-las em um lugar especial e o Rio de Janeiro foi perfeito”, explicou o fotógrafo, que considera a capital fl uminense uma locação “mítica, com uma luz incrível”. O calendário de 2013 é o preferido de Paolo Dal Pino, presidente da Pirelli na América do Sul. “É o que mais gosto porque é dedicado ao Brasil. McCurry construiu uma verdadeira homenagem ao país, fotografando os lugares mais signifi - cativos do Rio”, diz. Não foi a primeira vez que as modelos surgiram vestidas: isso já havia acontecido em 2008, na edição fotografada por Patrick Demarchelier em Xangai, na China.
Outra quebra de paradigmas na história do The Cal aconteceu em 1998, quando Bruce Weber decidiu fotografar homens e reuniu estrelas como o cantor Bono Vox, o músico B.B. King e o ator Ewan McGregor. Já em 2010, o calendário mostrou que está defi nitivamente atado ao universo fashion ao ser fotografado pelo estilista Karl Lagerfeld, da Chanel. O ‘kaiser’ dispensou locações exuberantes e preferiu registrar as imagens em seu próprio estúdio, em Paris. Lá, deu vida a suas deusas gregas contemporâneas. “Amo as deusas, elas foram as primeiras mulheres emancipadas. As divindades são feministas!”, disse.
Dentre as deusas imortalizadas pelo designer estava a modelo brasileira Isabeli Fontana, que é recordista de aparições no calendário: sete vezes, incluindo 2013. Ela também faz parte do time escolhido para a edição de 50 anos, que será lançada no dia 21 de novembro, em Milão. Nesta reportagem, você confere algumas imagens do making of, feitas em Nova York por dois veteranos do projeto: os fotógrafos Patrick Demarchelier e Peter Lindbergh. O elenco de beldades reuniu tops que marcaram a história do The Cal: além de Isabeli, Alessandra Ambrosio, Alek Wek, Miranda Kerr, Karolina Kurkova e Helena Christensen.
Os motivos que levaram o produto a se tornar um ícone da fotografia mundial não são muito claros até hoje. “A cada ano tentamos nos manter fiéis a três elementos: qualidade, inovação e exclusividade”, diz Dal Pino. A liberdade que os fotógrafos têm para expressar suas ideias, belas modelos e locações exóticas explicam parte do sucesso. “Um fabricante de pneus construiu sua imagem a partir desses calendários. É uma forma de marketing viral muito à frente de seu tempo”, resumiu Karl Lagerfeld em 2010. “E, como não se pode comprá-lo, isso dá a ele uma aura de mistério”, especulou o estilista. Bem lembrado, Karl. As 20 mil cópias produzidas anualmente não estão à venda: somente chegam às mãos de clientes especiais e personalidades escolhidas a dedo pela empresa italiana. Talvez essa exclusividade seja mesmo o ingrediente secreto responsável por transformar um calendário em objeto de desejo.