Muitos casais que se amam veem-se perplexos quando percebem que a relação está deteriorada. “O que poderia ter acontecido?”, perguntam-se. Eles queriam permanecer juntos, mas acontecimentos inapreensíveis levaramnos àquela situação indesejada. O que podemos nós, como observadores não envolvidos, apreender do inapreensível?
Os possíveis fatores da discórdia são tantos que se torna impossível abarcálos. Mas há uma dinâmica que se repete na relação de casal. É uma dinâmica darwiniana, pois se apoia em uma emoção atávica, existente desde o aparecimento da vida animal. Ela se desencadeia a partir de um sistema de defesa/medo, que temos gravado na parte mais primitiva de nossos circuitos cerebrais. Esse sistema entra em ação quando está em jogo a hierarquia social, o domínio de um indivíduo por outro. O prêmio da luta pela liderança é a posse do melhor quinhão — de comida, de fêmeas, do que for. O líder tem maiores chances de sobrevivência e de deixar seus genes para as gerações futuras. Isso está incrustado em todos os seres vivos.
Na espécie humana, a civilização tem lá a sua influência. Um casal não pretende estragar seu convívio, sua mútua atração e seu amor com disputas de poder. No entanto, em um plano subterrâneo, fora do conhecimento consciente, essas disputas existem e podem ser fator determinante para a ruína da relação. Frequentemente ouvimos um homem dizer: “Minha mulher é quem manda”. Além de ter caráter jocoso, a afirmação que parece admitir o poder da mulher na verdade se refere apenas a questões como escolha de móveis, decoração da casa, organização do dia a dia da família. A disputa pelo poder de que falamos antes ocorre em outro nível, é implícita. Um bom exemplo é quando a discussão causada por uma notícia qualquer gera argumentação interminável, sendo impossível chegar a um acordo ou à admissão de que existem dois pontos de vista. O que há por trás da paixão com que os dois se lançam àquela discussão tem a ver com a ideia de cada um de que detém a verdade, está mais qualificado, é superior e, portanto, nos assuntos intelectuais, tem o poder. Pode ser que um dos dois ceda, mas nele provavelmente permanecerá um certo ressentimento que, se acumulado, o afastará do parceiro.
A desvalorização constante e sutil do parceiro em várias situações de vida também provoca ressentimentos. Instruções no trânsito, como se o outro não soubesse dirigir direito, ou o apontamento repetido de quaisquer defeitos, não com o intuito de corrigir, mas de diminuir, ajudam a garantir o poder ou a fantasia de poder.
Não se trata de ter mais ou menos amor pelo outro, mas de possuir um traço de personalidade que exige a ocupação de posição superior à do outro. Embora não seja mais necessário à sobrevivência, esse traço ancestral permanece e provoca a disputa. Como ela é implícita, o casal não se dá conta do que está ocorrendo. A ajuda de um terapeuta de casal poderia por a descoberto as fontes dos ressentimentos de um e de outro, possibilitando evitar os comportamentos e verbalizações sutis que diminuem o companheiro a ponto de desencadear a guerra surda que só se manifestará claramente quando a aversão já tiver ido longe demais.