Estreia hoje a exposição 'Punk: Chaos to Couture' no Metropolitan Museum de Nova York. Saiba por que o visual de bandas como Sex Pistols e Ramones continua inspirando Givenchy, Chanel, Vivienne Westwood e outras marcas de luxo
Em entrevista ao jornal inglês The Independent, a estilista Vivienne Westwood, conhecida como “a rainha do punk”, declarou que Johnny Rotten, vocalista dos Sex Pistols, tinha razão quando cantava “Não há futuro. Seu sonho de futuro é uma máquina de comprar”. Conformada, Vivienne disse: “Sim, é exatamente o que somos, uma sociedade de consumo”. Talvez ela tenha motivos para tamanho desencanto. Afinal, no ano passado, ela mesma — quem diria — criou uma coleção-cápsula em homenagem ao jubileu de diamante da rainha Elizabeth II. E o raivoso Johnny Rotten, pasmem, se tornou protagonista de uma propaganda de margarina na Inglaterra. Mas nem tudo está perdido, Vivienne. Se lançarmos nosso olhar para Moscou, na Rússia, veremos que o espírito punk ainda pulsa em alguns jovens corações, como os das garotas do grupo Pussy Riot. Inspiradas pelo punk, Nadezhda Tolokonnikova, Maria Alyokhina e Yekaterina Samutsevich ficaram famosas por tirar o sossego da burguesia russa e foram condenadas a dois anos de prisão por um protesto contra o presidente Vladimir Putin, realizado em uma catedral de Moscou. Mas o que isso tem a ver com a moda? Tudo. Afinal, punk é atitude. E é por isso que ele ainda vive em cada canto do planeta e em cada passarela do mundo — inclusive na haute couture —vestindo personalidades como a cantora Lady Gaga e a modelo Alice Dellal.
“A moda adora flertar com elementos da rebeldia”, diz Denise Pollini, pesquisadora e professora de história da moda. E não foi diferente com a estética punk. O que de início chocava, foi sendo aos poucos assimilado e depois ‘pasteurizado’ e consumido pelo grande público. “Alguns elementos se tornam simbólicos e a moda se dedica a fazer constantes releituras de sua própria história”, afirma Denise. Por isso é possível encontrar, até hoje, elementos do punk nas passarelas das principais semanas de moda, desde as grifes mais inovadoras, como Rodarte e Alexander McQueen, até as mais clássicas, como Chanel e Givenchy. Sem mencionar as caveiras, que se tornaram símbolo do estilista brasileiro Alexandre Herchcovitch, por exemplo. “No Brasil, o punk está presente do Brás até a Oscar Freire. Os spikes, por exemplo, invadiram a moda clássica, e as caveiras se proliferaram inclusive nas roupas infantis”, lembra o consultor e stylist Arlindo Grund.
Para celebrar a influência do punk na moda, no dia 9 de maio, o Metropolitan Museum de Nova York vai inaugurar a exposição Punk: Chaos to Couture, que promete reunir mais de 100 looks inspirados nessa estética e criados por estilistas como John Galliano, Jean Paul Gaultier, Nicolas Ghesquière, Marc Jacobs, Rei Kawakubo, Karl Lagerfeld, Martin Margiela, Alexander McQueen, Zandra Rhodes, Riccardo Tisci, Alexander Wang e, claro, Vivienne Westwood. Uma das peças da mostra será o icônico ‘Safety Pin Dress’, da Versace, que exibe uma generosa fenda presa por alfinetes, e foi usado pela atriz Elizabeth Hurley na pré-estreia do filme Quatro Casamentos e um Funeral, em 1994. No site do museu, o curador da exposição, Andrew Bolton, diz que o punk tem tido uma influência incendiária na moda. “Apesar de a democracia punk se opor à autocracia fashion, os designers continuam se apropriando da estética punk para capturar sua rebeldia e contundência juvenil”, afirma Bolton.
Essa rebeldia pode ser sentida até hoje nas ruas de Londres. “Parece que a moda está no DNA dos britânicos. Eles têm uma habilidade nata para criar”, diz Grund. “A meu ver, é um jeito de extravasar, já que a maioria dos ingleses tem um comportamento mais comedido. A moda é uma maneira de se libertar desse rigor”, conclui. A princípio, a Inglaterra pode parecer um país conservador – afinal, vive sob um regime monarquista. Mas, historicamente, a música e a moda tratam de desmistificar essa imagem. Para ilustrar esse perfil contestador dos ingleses, seu humor ácido e sua ‘queda’ por subverter a ordem por meio da roupa, basta lembrar que os súditos da rainha usam até os escândalos reais para fazer moda, criando, por exemplo, camisetas com slogans que ironizam o recente episódio de nudez do príncipe Harry. Pelo visto, todo inglês já nasce um pouco punk. E a moda agradece.
Punk: a ressaca hippie
A década era a de 1970. O lugar, Londres. O som, o punk. Em uma loja no número 430 da mítica King’s Road, uma dupla visionária ajudaria a mudar os rumos da moda – e da música. Ele, Malcolm McLaren, empresário da banda Sex Pistols. Ela, Vivienne Westwood, estilista. Juntos, os dois traduziram em roupas e acessórios o contexto social e cultural que servia de combustível para o movimento punk. Ao contrário dos hippies – que pregavam o amor e a esperança – os punks se destacavam pelo pessimismo, a acidez e o deboche. “O punk pode ser considerado uma ‘ressaca’ do movimento hippie”, diz Denise Pollini, professora e pesquisadora de história da moda. O movimento que surgiu nos Estados Unidos, impulsionado por bandas como os Ramones, se espalhou pelo mundo, mas foi especialmente emblemático na Inglaterra. Isso aconteceu devido à dicotomia entre tradição e transgressão presente na sociedade britânica, o que, adicionado à recessão e ao desemprego nos anos 1970, resultou no cenário propício para o crescimento dos ideais e da estética punk. Os punks, aliás, eram anti-moda, já que esta também fazia parte do sistema que eles desprezavam. Por isso, o improviso, a desconstrução e a personalização deram o tom aos looks daquele período. Tachas, alfinetes, caveiras, acessórios fetichistas, coturnos e jaquetas de couro que hoje estão incorporados à moda eram, então, uma forma de agredir e de chocar. Era a época da liberdade sexual e da emancipação feminina, e a ordem era explorar as fronteiras e desafiar o establishment. E a indústria da moda, em sua incansável busca pelo novo, não ficou alheia a esse estilo atraentemente transgressor.
London calling
A moda que vem das ruas tem um quê de anárquica, contestadora e autêntica. Pelo menos era assim na década de 1970, quando despontava o movimento punk. Bandas como Sex Pistols, The Clash e Ramones exibiam jaquetas de couro estilo biker, camisetas com slogans, calças jeans e tênis, um figurino que não demorou a migrar dos palcos para as ruas. E, em seguida, para as passarelas.
A explicação vem do contexto histórico. Dos anos 1950 em diante, no período pós-guerra, a alta-costura entrou em decadência e o mundo assistiu à ascensão do prêt-à-porter. A sociedade se tornou mais dinâmica e a moda, mais informal. Então, os estilistas olharam para as ruas em busca de inspiração e referências. As ruas passaram a lançar tendências. E hoje isso acontece com mais intensidade e de forma globalizada, já que, com a internet, todos estamos expostos às mesmas influências. “Estamos todos muito conectados e o que acontece nas ruas influencia os criadores. Há um inconsciente coletivo que alguns conseguem ler, interpretar e transformar em produtos de moda”, diz Tatiana Putti, coordenadora da área de Moda do Senac São Paulo. “E acredito que os designers e cidadãos britânicos sempre estiveram um pouco à frente nesse sentido. Londres é historicamente vanguardista”, acrescenta.
O mix de estampas e sobreposições de peças que hoje vemos nas passarelas, por exemplo, são feitos há anos – e com maestria – nas ruas da capital inglesa. Segundo Bia Paes de Barros, editora de moda do CARAS Fashion, a influência do punk e das ruas na moda inglesa vem exatamente dessa vontade de testar o novo e de ir contra a corrente. “O desejo pelo desconhecido, por novos tecidos e materiais, estampas exageradas — porém seguindo uma linguagem mais ‘universal e comercial’ no que se refere às modelagens — faz dos designers da semana de Londres grandes destaques da moda mundial”, diz. Bia cita os estilistas Christopher Kane, Mary Katrantzou, Peter Pilotto, Jonathan Saunders e Matthew Williamson como os principais nomes do cenário fashion inglês atual.
Hoje, com a proliferação de sites de street style, onde são publicados os “looks do dia”, alguns se perguntam se a moda de rua — na Inglaterra ou em qualquer outro lugar do mundo —não teria perdido a espontaneidade e a autenticidade, se transformando em um grande negócio manipulado pelas grifes de luxo. A pesquisadora Denise Pollini acredita que não. “A moda das ruas continua expressando um desejo coletivo. Há um ‘espírito do tempo’ atuando, e ele é muito mais forte do que qualquer marca, patrocinador ou opinião de blogueiro”, conclui.