Honrar as refeições com toques jeitosos no ambiente nunca é trivial
A que horas será sua próxima refeição? Quer ela aconteça daqui a alguns minutos ou mais tarde, saiba que uma ocasião especial se avizinha. Isso significa que o prato pintado à mão, a toalha bordada pela avó, o castiçal garimpado na feirinha de antiguidades, o guardanapo de pano e qualquer outro artefato da sua estima não precisam esperar por uma grande celebração para embelezarem a sua mesa. Eles podem desdobrar seus encantos neste exato respirar de vida, que, como todos, é sagrado.
Antes de estirar a toalha, separar talheres e ajustar a louça bonita, lave a mesa com menta fresca. Uma sugestão, apenas, ofertada por Clarissa Pinkola Estés no livro A Ciranda das Mulheres Sábias (Rocco). Mas para que tanto esmero se sentar-se à mesa para se alimentar é uma das atividades mais triviais que existem? Porque, segundo a analista junguiana, nossa alma merece desfrutar dos prazeres no dia a dia e, se negamos esses pequenos regalos, permitimos que nosso “ego rabugento” determine como as coisas devem ser. Opacas e insossas. “Uma ‘ocasião especial’ é qualquer ocasião à qual a alma esteja presente”, vaticina a analista. Estamos combinados, então?
“Tudo é carinho, é espera, é autocuidado. Sozinhas, também estamos acompanhadas, a visita pode ser você. Se fazemos para nós mesmas no dia a dia, fica mais fácil quando chega alguém”, opina Fabiana Zanin, diretora de arte e ativista pela regeneração planetária. Rotina, para ela, é espaço para cuidar de si e do que é vivo, com o coração poroso e graça nos gestos. “Retribuo a natureza por me dar tudo o que cozinhei. Agradeço carinhosamente com beleza e cuidado”, externa.
Como nossa alma gosta do que trata bem os olhos. Já reparou? “Todos precisamos da beleza para que a vida nos seja suportável”, disparou sabiamente a escritora espanhola Rosa Montero. Justamente por isso o povo Navajo entoa uma oração em reverência à formosura que nos eleva e que pode estar em qualquer lugar. Desde que a visão esteja limpa e inclinada a reconhecê-la. “Que a beleza esteja diante de mim; que a beleza esteja atrás de mim; que a beleza esteja acima de mim; que a beleza esteja sempre ao meu redor.” Mãos em prece.
Claro, o que determina se algo é belo ou nem tanto varia de alma para alma. Por exemplo, galhos secos espetados numa garrafa de vidro reutilizada e disposta no centro da mesa podem arrancar um suspiro profundo, ou aversão, ou desdém. Sabe-se lá. O importante é ter ciência de que a fruição de uma mesa aprumada depende muito mais do espírito impregnado nas coisas ali reunidas do que da mera ostentação, vazia e estéril.
“Tenho vários objetos herdados de família e muitos potes e cumbucas brasileiras. Misturo tudo, gosto da ordem com a desordem visual, não sigo rótulos”, conta a criativa Fabiana Zanin. Admiradora das tradições ancestrais, ela coleciona potes indígenas trazidos de suas imersões pelo Brasil profundo. São seus tesouros. “Carrego-os na bolsa de mão como se fossem gente, para não machucar e chegarem inteiros”, revela.
Cada objeto eleito para estar conosco ao longo de uma refeição acende uma história na vasta memória dos afetos. Uma lembrança de viagem aqui, um costume familiar acolá. Como fios de luz, essas vivências vão se entrelaçando diante dos nossos olhos e formando uma rede na qual podemos descansar em nossas bases mais fundas.
Com Ellen Carnasciali foi assim. Ela passou a cultivar o tema da mesa posta em sua página no Instagram (@ellenccarn) por sentir necessidade de se religar à sua ancestralidade feminina e, desse jeito, reequilibrar as energias yin-yang no cotidiano.
“Olhando para a minha história, me deparei com mulheres da minha família que vibram dentro de mim com uma força e com uma dor muito grande. Mulheres que tiveram que cuidar mais dos outros do que de si mesmas. Mulheres que faziam muitas coisas com as próprias mãos, sobretudo a comida preferida de cada ente querido”, conta.
Agora, desse lugar que vê, ela quer honrar esse legado com uma reverência macia, um carinho leve que chega à mesa e acalenta o coração. “Depois de um dia intenso de trabalho, de ação, por que não entregar amor a mim mesma ou a outras pessoas numa mesa posta?”, indaga. E sugere para o brinde água com gás e chá de frutas silvestres numa linda taça. No ar, essência de romã da Turquia. No peito, presença. Na mente, merecimento.
Faz bem quem imprime a esse momento sua identidade, conferindo significados frescos aos objetos e às narrativas herdadas. “Tenho um faqueiro dourado que era da minha mãe, não é nada muito caro, mas ele faz uma vista na mesa que é impressionante. Veio em um estojo de plástico e tem mais de 40 anos, nenhuma peça está desbotada. Ele nunca tinha sido usado e ela me deu achando que eu aproveitaria justamente porque misturo as coisas. Acertou!”, conta Fabiana.
Mãe de dois adolescentes, a designer Alessandra Carignani sabe na prática como a criatividade pode revolucionar o ambiente. Um prato requentado, de repente, se torna um convite colorido e vibrante. A ponto de inspirar até elogios à mesa em estilo country, forrada com toalha xadrez, que passou pela casa do primo, depois pelo endereço da avó e agora acomoda o trio.
“Gosto de arrumá-la sem frescuras, com o que tenho à mão. Sempre coloco uma plantinha, nem que seja uma folhinha”, relata Alessandra. Ela acredita que nas coisas mais simples reside o potencial para nos encantar. Por isso, as têm em alta conta. “Os olhos e o paladar ficam felizes; as pessoas, envolvidas pela comida. É uma alegria.”
Texto originalmente publicado na revista Vida Simples (Edição 248).
Por Raphaela de Campos Mello
Jornalista e revive a menina na casinha quando admira a louça bonita.