Precisamos reconhecer e respeitar as várias fases da entrega amorosa

Às vezes me pergunto como seria a vida se não houvesse rótulos. Não faz muito tempo as relações afetivas recebiam os seus: paquera, namoro, noivado, casamento, divórcio e até - quem se lembra? - desquite. Rótulos são caminhos para limitações e atalhos para o preconceito, além de instrumentos de controle. Talvez por isso haja tanto empenho atualmente em eliminá-los das relações afetivas. Nossa mente foi programada para captar sinais do ambiente e traduzi-los de modo a compor um quadro de referência que possamos adotar para nos posicionar em cada situação. Dependendo do quadro formado mentalmente, assumimos o que é certo fazer. Portanto, nossa mente foi programada para rotular. Por exemplo: imagine que você está na fila do cinema e vê um rapaz e uma moça se beijarem na boca. O que sua mente diz? Eles são namorados? Noivos? São casados ou "ficantes"? Fiz essa pergunta a um grupo de jovens adultos e a um grupo de adultos de meia-idade e obtive a mesma resposta: "São namorados". Mas, quando perguntei o que se levou em conta para rotular o casal, o grupo de adultos disse que era o beijo na boca. Os jovens responderam, quase por unanimidade, que era o fato de estarem na fila do cinema! Então, hoje, ir ao cinema é referência para compromisso afetivo. Já o beijo na boca... As entregas física e afetiva acarretam transformações em graus variados de intensidade e complexidade. Lidar processualmente com essas transformações permite que haja uma transição gradual entre a imaturidade e a maturidade para a vida amorosa. Para isso é preciso que etapas sejam percebidas, identificadas e respeitadas. No passado, os rótulos pontuavam essas etapas e clareavam expectativas. Cada fase preparava para a seguinte. De modo geral, aprendia-se gradativamente a lidar com os desdobramentos gerados por vivências sexuais e amorosas. Nunca é demais esclarecer que "entregar" significa deixar aos cuidados de alguém. A entrega afetiva implica deixar-se nas mãos do outro. Esse é um risco que é preciso aprender a calcular. Não há outro modo de fazê-lo a não ser abandonando-se aospoucos e lidando com os resultados. Por outro lado, entrega afetiva implica saber se conseguimos cuidar do que nos foi confiado. Se o outro se joga integralmente em nossas mãos, o peso pode ser insuportável e, nesse caso, o deixaremos cair. Não há outro modo de saber o limite de nossas capacidades a não ser assumindo aos poucos a entrega do outro e lidando com os resultados do processo. Tudo isso pode gerar desilusões com as quais também é preciso lidar de modo responsável, o que depende de um aprendizado gradual. Por paradoxal que possa parecer, o controle que antes limitava também dava segurança e compunha um caminho. O que se vê agora é que, na tentativa de escapar ao controle e ao preconceito e com o propósito de vivenciar a paixão e o amor sem barreiras, as pessoas disponibilizam seu corpo, seus sentimentos e sua mente sem ter noção do que essa atitude desencadeia. O resultado é gente ansiosa que não sabe se o que fez pensando ser "certo" foi na verdade a causa dos insucessos afetivos. Gente, enfim, que não sabe se foi além ou ficou aquém do que a situação comporta e sua estrutura psíquica suporta.