No bairro de santana, zona norte de São Paulo, Miele desenvolveu o talento da criação por influência do avô. O primeiro contato com a moda veio logo na infância, quando passava as tardes na tinturaria da família vendo o trabalho e, principalmente, o carinho que o avô tinha com as roupas dos clientes. “Meu estímulo é cuidar da roupa da mulher assim como ele fazia”, diz. E foi durante a faculdade de administração na Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, que Miele começou a produzir peças para vender aos amigos.
Após um período conturbado no Brasil, Miele decidiu tentar o mercado internacional. Em setembro de 2001, apresentou sua primeira coleção em Londres. No ano seguinte, fez mais um desfile na capital britânica e estreou na Semana de Nova York, onde permanece até hoje e é membro do Conselho dos Designers de Moda da América (CFDa). Elogiado pela imprensa, foi o escolhido de personalidades como Camilla Belle, Sandra Bullock, Jennifer Lopez, Beyoncé e Eva Longoria para estrelar red carpets badalados.
A seguir, Miele conta como conquistou o reconhecimento internacional e revela seus planos para o futuro.
CARAS FASHION - Você tinha uma marca brasileira de sucesso, a M.Officer, mas resolveu sair do país e abrir uma loja internacional. O que aconteceu para você mudar o foco para fora do Brasil?
CARLOs MIELE - Depois de anos no comando da M.Officer, resolvi me aposentar. Fui morar na minha casa em Florianópolis e só pensava em “pegar onda”. Mas minha aposentadoria durou pouco tempo, somente alguns meses. Lá é meu refúgio, mas percebi que não poderia viver assim. Então, fui morar em Londres, um lugar que adoro, e fiquei com vontade de apresentar uma coleção lá. Isso aconteceu porque fui a uma exposição na Tate Gallery que mostrava os fatos mais importantes do século 20 e a única referência na área de moda era um desfi le do Alexander McQueen, com uma modelo que usava próteses (a modelo Aimee Mullins, que teve as duas pernas amputadas por conta de uma doença e desfilou pela grife em 1999). Mas meses antes desse desfile, que foi considerado pela exposição a ação mais importante que a moda já realizou, eu tinha feito isso no Brasil e fui muito criticado (desfile da M.Officer em 1998 com o modelo Ranimiro Lotufo, que perdeu uma das pernas em um acidente de paraglider).
CF - Foi nessa hora que você decidiu que não iria mais desfilar no Brasil?
CM - Eu tinha me desinteressado de desfilar no Brasil porque, naquele momento, os estilistas só podiam fazer aqui o que vinha de fora e as minhas atitudes na moda eram muito criticadas. Mas isso nem me incomodava tanto. O que me deixava chateado era a polêmica. Eu só queria fazer o meu trabalho, colocar minhas ideias na passarela. Mas toda vez que eu apresentava um desfile, era a mesma coisa. Tudo o
que fiz naquela época, e que era considerado supercontroverso, hoje, qualquer estudante de moda acha normal.
CF - como você enfrentou essas críticas?
CM - Para os críticos, era como se eu quisesse provocar o mundo da moda. Naquela época, como a internet ainda não era tão forte, eles viajavam para acompanhar os desfiles e só valia no Brasil o que já tinha sido feito seis meses antes lá fora. Se na Europa e nos Estados Unidos tocava música eletrônica, aqui tinha que ser assim também. Por exemplo: chamei o Naná Vasconcelos que, para mim, é o melhor percurssionista do mundo, para fazer um desfile da M.Officer. A crítica encarou isso quase como uma ofensa pessoal, mas eu não queria desafiar ninguém, estava apenas mostrando que na passarela é preciso fazer o que se gosta. Eu tentava explicar, mas sempre virava uma grande polêmica. Os jornalistas não colocavam a minha explicação e aí ficava mesmo estranho. Não vou passar o resto da vida brigando na imprensa por causa das minhas ideias.
CF - E lá fora foi diferente?
CM - Em Londres, percebi que existe essa liberdade. A prova final foi que o mesmo desfile que fiz no Brasil, e que foi supercriticado, foi elogiado lá. Disseram que eu estava trazendo ideias novas para a moda. No meu primeiro desfile em Londres, quis fazer uma homenagem ao índio brasileiro e sua arte primária, que é a herança mais importante do Brasil. Queria resgatar esse conceito e fazer uma moda charmosa e cultural, mas os críticos daqui falaram que eu estava me aproveitando do índio. Foi nesse desfile em Londres que pela primeira vez usei o nome Carlos Miele. Mas tudo fez parte do amadurecimento da moda. Quem me criticava no Brasil, herdou preconceitos naturais de um país colonizado. Alguém teria que fazer essa transição.
CF - Você é um homem de negócios?
CM - Para ser designer é preciso criar um produto dirigido. Estamos entrando em uma década bem funcional e eu quero que meu produto vista qualquer mulher do mundo. Meu desafio é vestir as mulheres chinesa e japonesa com a sensualidade brasileira. Não vou me adaptar às roupas que elas usam, vou fazer o que eu sei. Vendo muito no Oriente Médio e pretendo abrir uma loja no Líbano. Tinha amigos de infância libaneses, me lembro da culinária, me sinto em casa para abrir uma loja lá.
CF - Você cria para qual mulher?
CM - Faço roupas com raízes brasileiras para uma mulher contemporânea que pode estar em qualquer lugar. Vendo em 30 países, além das 16 lojas Carlos Miele no Brasil, Nova York e Paris.
CF - O artesanato brasileiro que você utiliza é a razão do seu sucesso no exterior?
CM - A alta-costura é artesanal e, com o artesanato, você cria uma ligação com as comunidades excluídas. No Brasil, temos a vantagem de ter um artesanato muito rico, influenciado pela natureza e pela cultura africana. O que eu faço é colocar uma lente de aumento e não deixar que o fuxico seja apenas uma técnica de aproveitamento de retalhos.
CF - Como você vê o Carlos Miele da época do começo da M.Officer e o Carlos Miele de agora? O que mudou durante essa trajetória?
CM - Eu só faço isso, né? Então eu estou sempre amadurecendo. Hoje, eu me vejo como uma pessoa com experiência e que já errou bastante. Antes era um jovem imaturo, que ainda tinha muitos sonhos e sem a mínima noção dos problemas que iria enfrentar. Não me vejo em outra profissão. Eu realmente acredito que as pessoas vieram ao mundo a trabalho.
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