Apenas uma cadeira, uma luz central e uma Fernanda Montenegro (81) de calças escuras e blusa social branca convocando memórias, vivências e atirando pensamentos ora reflexivos, ora contestadores, para a plateia compõe Viver Sem Tempos Mortos (termo usado durante protestos das revoluções da contracultura no Brasil no final da década de 1960). A peça, que reestreia no Teatro Raul Cortez, São Paulo, no próximo dia 8 de outubro consegue, ainda, se sustentar durante uma hora por conta da obra forte de Simone de Beauvoir (1908 - 1986), escritora, filósofa e feminista francesa, e da incontestável presença de palco da veterana que, ao desembarcar em seu universo, acabou encontrando com ela mesma no meio do caminho.
“Foi mais do que passear pela obra de Simone, eu fiz uma revisão da minha própria vida que tive a coragem e o privilégio de levar ao palco”, afirmou Fernanda em entrevista à CARAS Online.
“Tenho 81 anos, sendo que passei 65 anos vivendo publicamente, trabalhando no teatro, televisão e cinema. Passei por muitos textos, muitas mudanças; tive filhos, netos, perdi mãe, pai, irmão, marido; experiências boas e duras. E sempre encontro no texto de Simone algo que me faça refletir sobre a própria vida. No geral, nós duas vivemos de formas parecidas. Acho que se eu pudesse sentar com ela, hoje, teríamos muitas memórias em comum”.
Com direção de Felipe Hirsch e cenário de Daniela Thomas, Viver Sem Tempos Mortos teve sua temporada suspensa em 2010 para que a atriz pudesse trabalhar na novela Passione (na qual deu vida a personagem Bete), de Silvio de Abreu (68). O processo, contudo, tinha sido tão intenso para Fernanda que valia a pena retornar ao palco e voltar a viver Beauvoir.
“E agora tem algo mais arquitetado também, algo se fortaleceu nesse caminho. Acho que melhorei”, disse, entre risos, expressando seu típico bom humor. Existe, além disso, um esgotamento físico de Fernanda durante o espetáculo (“Eu termino a peça suando. Eu não ando pelo palco, mas tenho que ter uma concentração enorme”) não somente pelo pensamento denso de sua personagem, mas também porque a atração toda é apresentada em forma de um monólogo - um desafio para qualquer ator, mas que enriquece sua experiência. “Todo ator tem que monologar diante da plateia em algum momento da carreira. É como viver ou morrer, uma experiência importante que precisa acontecer”, definiu.
Simone e Sartre
O livro Tête-à-Tête, de Hazel Rowley, obra que reúne correspondências em cartas de Simone de Beauvoir com Jean-Paul Sartre (1905 - 1980), filósofo, escritor e crítico francês, foi essencial para o nascimento de Vivendo em Tempos Mortos. A partir disso, Fernanda fez suas pesquisas e um aprofundado laboratório para dar veracidade à sua Simone no tablado. “Foi um trabalho de dois anos em cima da obra da Simone e do Sartre”, recordou. “Fiz um resumo de 200 páginas do que li; o que não é nada, é só um cheiro de uma vida que foi contada em cerca de seis volumes de biografias”.
Houve até mesmo um árduo trabalho para sintetizar os pensamentos prolixos, nada fáceis, vindas de uma mulher extremamente verborrágica, que com suas ideias mudou o mundo a partir da metade do século passado. “Como uma boa francesa, Simone pensava bem e falava claramente seu pensamento; um pensamento que contribuiu para que a humanidade fosse menos dividida. No seu tempo, o homem era absoluto e a mulher era o ‘outro’”, disse
Para atriz, sem Simone e sem Sartre, não haveria a contracultura; não haveria as revoluções de 1968, não teriam possibilidades as grandes mudanças, que podemos vivenciar hoje. “Os dois contribuíram para uma mudança a partir de dois princípios: a liberdade e a verdade”, concluiu, fazendo uma breve análise do novo século. “Hoje, a coisa feminista ficou meio desagradada. Prefiro falar mais do feminino que, para mim, é a grande presença atualmente. O Brasil é um país matriarcal. Na vida contemporânea, a mulher tem tomado o espaço e assustado os homens”.
Plateia farta
Para quem já apresentou textos do dramaturgo irlandês [Samuel] Beckett (1906 - 1989) para uma plateia lotada na periferia do Rio de Janeiro, ter ou não ter um teatro cheio não é mais uma preocupação. “Quando fiz Beckett na periferia, a preço popular, vi a plateia vindo de ônibus, assistindo compenetrada, aplaudindo de pé e indo embora feliz para sua casa”, recordou.
Algo bem parecido aconteceu na primeira temporada de Viver Sem Tempos Mortos. “Fiquei surpresa ao ver uma plateia farta, interessada e integrada em tudo que estava acontecendo no palco”.
“Não podemos ‘preconceituar’ a capacidade de envolvimento de uma plateia dita inculta, periférica. Esse espetáculo me confirma que, todo trabalho que tenha clareza, é para todo tipo de público. Não se pode dirigir o que o povo tem que ver”, reclamou.
E quem quiser conferir a peça apenas para assistir à veterana Fernanda Montenegro no palco pode se surpreender com um espetáculo rico. Afinal, para a atriz, um grande nome em cima do palco não diz nada. “O público pode até ir ao teatro, mas se for para assistir uma porcaria de peça, ele levanta da cadeira e vai embora”, ressaltou.