Em Los Angeles, Fernando Grostein Andrade e Fernando Siqueira abrem o jogo sobre processo de criação do documentário 'Quebrando Mitos'
Autoexilados em Los Angeles, na Califórnia, o casal formado pelo cineasta Fernando Grostein Andrade (41) - irmão do apresentador Luciano Huck (51) - e pelo musico e ator Fernando Siqueira (23) lançaram, há pouco mais de um mês, o documentário Quebrando Mitos. “O filme propõe o conceito de masculinidade catastrófica, ilustrando a ascensão de Jair Bolsonaro como exemplo de o que acontece quando um homem com masculinidade frágil chega a uma posição de poder”, explica Grostein. A obra, que pode ser vista gratuitamente no canal Meteoro Brasil, do Youtube, já ultrapassou 1 milhão de visualizações e ficará disponível somente até o próximo dia 30 de outubro. O projeto começou a ser desenvolvido há três anos, período em que os dois, por segurança, deixaram o Brasil.
Grostein, principalmente, recebe ameaças desde 2011, quando lançou o documentário Quebrando o Tabu, que debate a descriminalização das drogas no País. O projeto ganhou perfil homônimo no Instagram, Facebook e Twitter e soma mais de 21 milhões de seguidores. Em 2015, a página chegou a ser hackeada. As intimidações ao cineasta se agravaram dois anos depois ao publicar um vídeo em que se declarava gay. O ódio cresceu nas eleições de 2018: por criticar o Presidente Jair Bolsonaro, Grostein foi coagido nas redes sociais a parar de falar sobre política sob o risco de precisar de um caixão lacrado em seu velório. Quebrando Mitos é a prova de que ele não se calou. Dos Estados Unidos, o casal concedeu à CARAS a entrevista a seguir em que falam sobre a proposta do filme e como o apoio um do outro, com o suporte da música, os ajudaram no processo de realização do trabalho.
-O que significa masculinidade catastrófica?
Grostein - É um termo que surgiu ao longo do processo de desenvolvimento do filme. Masculinidade tóxica não nos pareceu suficiente para explicar a masculinidade de homens como Jair Bolsonaro, pois se refere a um homem que causa dano a um indivíduo para benefício próprio, como um cara com as pernas abertas no ônibus lotado. A masculinidade catastrófica é a expansão disso para uma escala maior, trazendo danos a uma sociedade, um país e, no caso do Presidente do Brasil, pela destruição da Amazônia, o planeta inteiro.
-Você considerou o primeiro corte do documentário inassistível. Por que?
Grostein - Estava muito triste, era só desgraça: imagens de chacina a desmatamento em massa, e as violentas frases de Bolsonaro. O filme estava escuro e desesperançoso. Resolvemos destacar o papel da resistência e o filme ganhou outra cor.
-Para fazer contraponto ao que chama de masculinidade catastrófica do Bolsonaro, você expôs a sua própria história, que envolve preconceitos, abusos, estupros… Como foi o processo de falar sobre isso?
Grostein - Achei importante dizer de onde venho. Não me identifico muito com documentários em terceira pessoa, narrados por uma “voz de Deus” onisciente – parece que o que está sendo dito é uma verdade absoluta. Achei importante ser sincero com o espectador. Assim, quem assiste sabe qual é o meu ponto de vista, meus pontos cegos e onde meu olhar é mais apurado.
-Você teve um colapso nervoso durante a realização do documentário. Qual foi o gatilho?
Grostein - O material de pesquisa do filme é muito pesado. Foram horas de depoimentos de abusos, estupros, violência, suicídio, falas mentirosas, sangue e chacinas. Para quem se preocupa com meio ambiente, para quem é LGBTQ, ou simplesmente para quem é aliado na luta antirracismo, é muito difícil. Dediquei uma vida filmando documentários sobre a linha de frente da marginalização – estudar fake news em oposição, ao que eu vi, foi um mergulho nas trevas. Me senti esgotado, não conseguia assistir a nenhum filme, tudo era gatilho, não conseguia sair de casa direito, ir a lugares barulhentos, enfim. Estava apagado.
-Grostein já declarou que você o encorajou a seguir em frente quando ele teve o colapso. De fora, o que você enxergava?
Siqueira - Quando o Fê faz um projeto, ele mergulha inteiro. Ele é uma pessoa focada e criativa. Então, observar o documentário criar forma foi muito interessante. Assistimos ao filme diversas vezes e o Fê tinha muito claro na cabeça quando ainda não estava pronto. Então, partia para novas anotações, esboços e estudo.
-Quando se sentiu confortável para intervir e ajudá-lo com as mudanças?
Siqueira - De certa forma, já estava envolvido no projeto, pois assisti a vários cortes, além de narrar a versão em inglês. Mas o que realmente me deixou confortável foi ter uma equipe tão boa e de confiança que me ajudou e ensinou muito.
-As perseguições diminuíram quando saíram do Brasil?
Grostein - Infelizmente continuo recebendo ameaças, mesmo aqui nos EUA. Não pretendo me calar ou me curvar a fascistas. Todo mundo pode pensar diferente, desde de que não coloque a existência do outro em questão.
-Como lidou com o medo durante anos de ameaças?
Grostein - Mergulhar na música foi uma forma de lidar com tudo isso. Eu e meu marido formamos uma banda, a FS2. O Fernando compôs uma música sobre exílio, Califórnia. Ela está no filme. Música, cultura e esporte têm um papel terapêutico em lidar com traumas.
-Qual a importância dessa parceria musical durante o processo de criação do filme?
Siqueira - A música ajudou a limpar nosso sistema depois de fazer esse filme. Depois de diárias exaustivas de edição, me sentava ao piano e compunha ao lado do Fê, que me direcionava. Vamos lançar um álbum no primeiro semestre do ano que vem e pretendemos fazer shows. Já temos 13 músicas quase prontas.
-Para o documentário, vocês entrevistaram amigos de infância do Presidente, o ex-assessor de imprensa dele, companheiros da época da academia militar… Como foi a receptividade deles?
Grostein - Todos foram muito receptivos. Sou grato à forma respeitosa que nos receberam. Eles têm suas convicções e se orgulham delas, mas os depoimentos falam por si e refletem muito o buraco em que nos encontramos agora.
-Quebrando Mitos também aborda a estrutura de poder e privilégio dos quais os homens heterossexuais brancos não abrem mão. A partir de que momento você percebeu essa estrutura na sociedade?
Grostein - Só compreendi essa questão com maior profundidade ao fazer o filme. Percebi como, nos EUA, nunca houve uma presidente mulher. Apenas um negro, todos os outros brancos. Percebi que quando alguém fala de economia na TV, é sempre um homem branco. Liguei os pontos e percebi como a questão da masculinidade atravessa desde a questão LGBTQ até a questão do meio ambiente. Muitos homens se sentem ameaçados, acham que ao questionar a concentração de poder, estamos atacando. Na verdade, a mensagem é: vamos dividir o poder, a diversidade favorece a inteligência coletiva. Todos temos pontos cegos, se as decisões da sociedade (ou do planeta) são tomadas pelos mesmos tipos de pessoa, perdemos ao não enxergar soluções que os pontos cegos delas não alcançam.
-Você já declarou que o Bolsonaro é um idiota útil. Por que?
Grostein - Bolsonaro foi oportunista para servir de “capanga” de setores da elite que são equivocados. São setores que herdaram junto com suas fortunas, preconceitos escravocratas e machistas dos nossos tataravôs. O mundo mudou, mas alguns donos de fortunas – não todos – têm tanto medo de perder seus privilégios que contratam milicianos para garantir suas posições. Isso vai desde a contratação de seguranças particulares que foram maus policiais, até “jagunços” políticos que fazem o serviço sujo. Do que adianta fazer baile beneficente pelo meio ambiente e ter um capanga para remover as proteções ambientais pela Amazônia?
-Eduardo Bolsonaro reagiu ao documentário com uma postagem no Twitter: "Irmão do Luciano Huck problematizou a masculinidade do presidente Jair Bolsonaro. Mais uma prova de que o PR é imbrochável e incomível, não adianta”. Ao que você respondeu: "O filho do presidente se incomodou com o nosso documentário, mais uma prova de que a masculinidade do mito é frágil”. Recebeu algum outro retorno de pessoas ligadas a Bolsonaro?
Grostein - Logo depois desta postagem, Bolsonaro começou a gritar, no dia 7 de setembro, que era imbrochável. Quem se importa? Uma apoiadora de Bolsonaro, com uma camiseta fazendo alusão à Ku Klux Klan, ficou incomodada quando filmei ela aqui nos EUA. O marido dela me seguiu filmando e disse que ia me dar um tiro. Recebo mensagens de ódio sempre, não me incomoda mais.
-O que o Luciano Huck lhe disse após ver Quebrando Mitos?
Grostein - Luciano mandou uma mensagem muito carinhosa dando parabéns pelo filme. Fiquei muito feliz, ele é uma grande referência na minha vida.
-De que maneira trabalhar nesse projeto o transformou?
Siqueira - A coisa principal que aprendi foi ter resiliência, entender que vão ter buracos no caminho, que é preciso estar focado no que quero alcançar e correr atrás disso.
-No final do filme tem a frase "Na luta pela justiça social, é necessário ter solidariedade não só pelo oprimido, mas também pelo opressor, porque a luta é pela humanidade”. O que quiseram transmitir com ela?
Siqueira - Meu pai nos mandou esta frase. Acho importante dizer que não considero todo Bolsonarista uma pessoa má e ruim. As pessoas estão sendo manipuladas por mentiras e por sistemas como a indústria das armas ou as grandes igrejas evangélicas e seus “dogmas”. As pessoas estão muito focadas em esquerda e direita e esqueceram de pensar racionalmente sobre os danos que uma pessoa como Jair Bolsonaro causa.
-A receptividade de Quebrando Mitos é diferente dependendo da geração?
Siqueira - Ele foi bem recebido por todas as gerações. Isso vem também por causa da diversidade na equipe. Percebemos que ele fala de forma mais direta com os LGBTQs e que alguns homens heterossexuais se incomodam além da conta. Quando fazemos uma crítica aos homens heterossexuais, não falamos de todos. Claro que existem milhares de exceções e aliados importantes. Estamos falando do coletivo. E pedindo: por favor, melhorem.
-O que acharam do resultado do primeiro turno e o que esperam do segundo turno?
Grostein - O primeiro turno refletiu trapaças do Bolsonaro. O falso padre foi um golpe desleal. Fake news é jogar fora das regras. Infelizmente a democracia e a liberdade no Brasil continuam em risco.
-Por que escolheram Los Angeles, na Califórnia, como o local do autoexílio?
Grostein - Foi um misto de coisas. Para nossas carreiras, Los Angeles fazia muito sentido. Mas ao chegar aqui descobrimos que essa cidade é uma meca para pessoas LGBTQ de todo mundo que fugiram de situações abusivas, em busca de um local seguro.
-Qual foi a descoberta mais especial que um fez sobre o outro nesse período em que vivem juntos?
Grostein- A resiliência que temos e a força que damos um ao outro. Quando um cai, o outro levanta. E assim vamos juntos.
Fotos: Jivi Oxy, Paulo Macedo e Rafa Levy