O ser humano deseja ao mesmo tempo estabilidade e aventura - como nas sagas dos heróis, em que há um período de perigos e façanhas e, depois, a recompensa de uma vida tranquila ao lado dos entes queridos. Para muitos de nós, histórias e mitos são suficientes para satisfazer o desejo de aventura. Tomamos contato com eles sentados na nossa poltrona preferida ou deitados em nossa cama. Enquanto o herói enfrenta apuros nós também os enfrentamos, mas em segurança. Muitas vezes nosso desejo de aventura se aplaca quando nos sentimos na pele do herói. No entanto, nem sempre é assim. Premidos pela curiosidade e pela insatisfação com a rotina, procuramos "sarna para nos coçar", como diriam nossos sábios avós.
Porém, o desejo de estabilidade permanece, ainda que essa estabilidade seja cada vez mais difícil de se alcançar num tempo em que tudo se move. Karl Marx (1818-1883), o filósofo e economista alemão, já dizia que "tudo que é sólido se desmancha no ar". Do universo estático da Idade Média, quando o homem tinha o conforto da previsibilidade, passo a passo chegamos a um mundo em perene movimento. Em seu livro Do Big Bang ao Universo Eterno, o físico carioca Mario Novello (68) escreve que um dos últimos redutos que ainda tínhamos como estático - o Universo - é visto hoje como dinâmico e histórico. Tudo se agita. E, no entanto, continuamos precisando de estabilidade, tanto quanto de instabilidade. O leitor de aventuras está estável, lendo seu livro, e ao mesmo tempo instável, identificando-se com o herói. O soldado está num cenário convulso, com bombas ameaçando explodir seu acampamento, e em meio a tal instabilidade busca estabilidade na fotografia da amada, que contempla e beija para se assegurar a existência de um corpo e de uma alma que o acolherão.
Para duas pessoas apaixonadas, a estabilidade existe na forma de ininterrupção. Eles desejam estar e estão sempre que podem juntos. Isso, para eles, é amor. Só têm olhos um para o outro e nada que não seja sua paixão os distrai. Porém, cedo ou tarde a paixão dá lugar a um sentimento mais tranquilo, que permite que se olhe para os lados, para fora da relação apaixonada. A pessoa que estava perdida dentro da outra retoma a individualidade e, ao fazê-lo, vive processos e sentimentos que estavam latentes. Seu amor, mesmo que sólido e incontestável, não se traduz mais em dedicação total. Agora existem aproximações e afastamentos, flutuações de intensidade e qualidade, sentimentos paradoxais, ambivalências, fantasias, curiosidades que fazem olhar para além da relação.
A mudança pode acontecer em tempos diferentes para cada um. E aquele que continua apaixonado não entende o que se passa. Acha que não é mais amado, e isso se torna fonte de malentendidos. É importante que um se ponha no lugar do outro para entender o que está vivendo, mas pedir isso a um apaixonado é quase perda de tempo. O esforço virá mais facilmente daquele que já passou o período de paixão absoluta. Ele terá condições de compreender e acolher a incompreensão do parceiro, sem se revoltar com o que poderá ser sentido como tentativa de controle e dominação. Talvez valha mais a pena este esforço do que simplesmente se afastar de uma relação amorosa promissora.