...conduta, significa a arte de se regalar com a boa comida. Já o mal das tripas, palavra vinda do árabe tarb, prega de tecido, ou do latim exstirpare, arrancar, pode acometer quem se regala demais.
Caldo: do latim
caldus, quente, da mesma raiz de calor, quente, este formado a partir do espanhol
caliente, radicado no latim
calens, do verbo
calere. Em sentido figurado apela-se para a variante cálido, para qualificar algo apaixonado ou amoroso. De adjetivo, caldo passou a indicar aquilo que deveria estar quente às refeições, tornando-se substantivo para designar o alimento feito de água em que foram cozidos carne ou peixe. Foi como alimento administrado a doentes que teve seu primeiro registro na língua portuguesa, feito pelo rei poeta
Afonso X (1221-1284), o
Sábio, em
Cantigas de Santa Maria:
"Comer não podia, nem beber nenhuma coisa senão caldo." Houve um caldo preto pavoroso, de sabor insuportável, na cidade-estado Esparta, que se opunha à refinada Atenas. O escritor francês
Jacques Anatole François Thibault, mais conhecido como
Anatole France (1844- 1924), creditou a famosa coragem dos soldados espartanos ao caldo: morriam em combate para não terem de voltar e engolir a horrorosa gororoba.
Gastrônomo: de gastronomia, do grego
gastronomía, de
gastrós, caso genitivo de
gaster, ventre, e
nomía, de
nómos, ordem, regra de conduta, significando a arte de se regalar com a boa comida. O vocábulo chegou aos idiomas neolatinos no alvorecer do século XIX, primeiro sob a forma de gastrologia, como aparece em
Tratado sobre a Gulodice ou o
Livro dos Gulosos, do grego
Arquestratos (século IV a.C.). No entanto, por influência francesa, que adotara a forma
gastronomie em 1800, na década seguinte o português mudou de gastrologia para gastronomia. Gastro está presente em outras palavras procedentes do grego, como gastromancia (arte de adivinhar pelas vísceras dos animais) e gastrotomia (cortar o ventre para embalsamar). Entre os romanos,
Marcus Gavius Apicius (século I), famoso gastrônomo, escreveu
De Re Coquinaria (Coisa de Cozinha), em que discorre sobre o paladar do império romano. Comilão, esbanjou uma fortuna em pratos refinados como línguas de rouxinol, pavão e flamingo, e calcanhares de camelo. Quando o dinheiro acabou, suicidou-se tomando veneno. Na Roma antiga, houve três gastrônomos chamados Apicius, pseudônimo adotado pelo jornalista Roberto Marinho de Azevedo (1941-2006), cronista do
Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, durante longos anos. Até a Idade Média, o único talher era a faca. Não havia guardanapo. Falava-se com a boca cheia, e arrotar era agradecimento refinado. A etiqueta francesa surgiria apenas no século XVIII, depois da invenção da colher e do garfo, este inicialmente de dois dentes, depois de três, aos quais os italianos acrescentaram mais um, para melhor pegar o espaguete.
Marmita: do francês antigo
marmite, fingido, hipócrita. Passou a designar vasilha em que os soldados comem o rancho e depois o conjunto dessas vasilhas acomodadas umas sobre as outras e adaptadas para transporte. A palavra francesa deve-se ao fato de a marmita esconder as diversas comidas porque uma serve de tampa a outra. Os antigos romanos denominavam
gastrum, estômago, o recipiente com fins semelhantes. Era um vaso bojudo, cuja denominação vinha do grego
gastra, gástrula no português, que é sinônimo de marmita.
Tripa: de origem controversa. Pode ter vindo da redução de estripar, do
latim exstirpare, arrancar, tirar, ou do árabe
tarb, prega de tecido, aplicada por metáfora às pregas do intestino. Aparece em expressões como à tripa forra, isto é, em grande quantidade, principalmente em se tratando de comida; fazer das tripas coração, grande esforço para problema difícil; e ainda mal das tripas, como era caracterizada por charlatães qualquer dor de barriga. Foi célebre um
"mal das tripas" provocado por
Anne Lefèvre Dacier (1651- 1720), esposa do filólogo francês
André Dacier (1651-1722), secretário perpétuo da Academia Francesa. Tradutora de clássicos gregos e adversária dos modernos, em um de seus êxtases, arrebatada até Esparta, sem querer descobriu a verdadeira receita do caldo preto. Recuperada a consciência, fez o prato e convidou os amigos para apreciá-lo. Foram todos hospitalizados, vítimas de enlouquecedor mal das tripas, segundo o diagnóstico da assustadora medicina do período. Acostumada a descartar parte dos alimentos para cozinhá-los, ao traduzir
Homero (século IX a.C.), extirpou dois cantos da
Ilíada, sendo muito criticada pelo também helenista
Antoine Houdar de la Motte (1672-1731). A lingüista cozinheira esqueceu-se de que o poeta grego considerava o peixe um alimento infecto, que só deveria ser comido por marinheiros famintos ou náufragos desesperados, segundo nos informa
J. A. Dias Lopes em seu delicioso livro
A Canja do Imperador (Companhia Editora Nacional).