Foi-se aquele tempo em que os amores eram previsíveis, restritos a uma mesma classe social, delimitados pelos limites da cidade, provenientes do círculo de relações familiares e de amizade, do colégio, da universidade, dos locais de trabalho, do clube, da comunidade. O mundo expandiu os horizontes e as possibilidades. Ruíram, então, os valores tradicionais: os desejos aproximaram improváveis relações entre pombinhos de todos os lugares. Ao mesmo tempo, os amores tornaram-se instáveis e volúveis, múltiplos e variados, sem distinção territorial - e de classes, cores, gêneros ou idades. É a globalização no amor! Hoje, bem mais do que há três décadas e meia, quando Chico Buarque (66) compôs sua célebre música, é hora de indagar: "O que será que será/ Que vive nas ideias desses amantes/ Que cantam os poetas mais delirantes/ (...)/ O que não tem vergonha, nem nunca terá/ O que não tem juízo."
Mas confundir com um amor de qualidade as atrações epidérmicas e as transações de solteiros e solteiras ávidos por gotas de prazer é banalização. Nessas atrações sem maior compromisso, as cores podem se misturar sem estranheza, as diferenças de origens e de línguas, se apagar sem criar confusão e as distâncias geográficas, sumir como num passe de mágica. Afinal, para que se importar com os sotaques ou as concordâncias verbais, as cores de unha, o modo de se vestir ou o jeito de falar, se o que interessa é a satisfação do presente,do agora, enfim, se o outro é descartável - e amanhã vai ser outro dia?
É claro que seduções e relações superficiais podem evoluir. Nesse momento, porém, quando alma toca alma, e a intimidade afetiva aumenta, podem surgir sinais de estranha inquietação: diferenças antes consideradas pouco importantes começam a incomodar. Entre essas diferenças podem estar detalhes superficiais e até certo ponto engraçados, como sotaque, jeito de se vestir, cores aplicadas na unha ou no cabelo, religião, tatuagens, gostos musicais ou estéticos.
A verdade é que nos dias de hoje somos confrontados o tempo todo com inquietantes estranhezas. Nas ondas da internet e dos aviões a jato, fomos jogados numa pequena aldeia global. Será que a engenharia do amor exige a construção de uma ponte de tolerância sobre as águas das diferenças? Ou serão os sinais exteriores fortes o suficiente para prevalecer sobre a afeição e a sintonia em vários outros aspectos decisivos de uma relação? Depende. Às vezes, os amores começam superando estranhezas secundárias e se afirmam no principal, já que outros fatores passam a atrair mais, para além dos sinais exteriores: o caráter, os dotes de personalidade, a criatividade, a maneira de ser. É bom lembrar que, de todo modo, o outro sempre nos causa uma certa estranheza e que isso faz parte da reação narcísica universal dos seres humanos. Eis o segredo do amor: quando se gosta muito, a aceitação e o desejo prevalecem sobre o repúdio. Mas isso tem um limite. Quando os sinais aparentes transmitem - e condensam - algumas diferenças que são inconciliáveis para além da superfície, é possível que o amor se torne inviável.